Cuidados bucais na infância e na adolescência

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Tendo como referência o princípio segundo o qual “a criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990), e também que a saúde bucal está incluída neste contexto, todos os profissionais que dão assistência a estes grupos populacionais necessitam estar atualizados sobre os aspectos elementares relacionados aos cuidados bucais e às situações clínicas que sugerem a necessidade do encaminhamento do paciente a um profissional mais especializado. 

Todo cirurgião-dentista está legalmente habilitado a oferecer tratamento aos seus pacientes pelos conhecimentos adquiridos em curso regular de Odontologia (Lei nº5081, de 24 de agosto de 1966). Dentro da Odontologia, a especialidade denominada Odontopediatria é aquela que tem o objetivo de diagnosticar, prevenir e tratar problemas de saúde bucal da criança e do adolescente. A Ortodontia, por sua vez, tem o objetivo de diagnosticar, prevenir e tratar alterações do posicionamento dentário e esquelético de crianças, adolescentes e adultos (resolução CFO 185/93V – Art. 58). 

cuidados bucais

Consultas com o Cirurgião-Dentista

A Associação Brasileira de Odontopediatria recomenda que por volta dos primeiros 6 meses de vida da criança aconteça a primeira visita odontológica. Nela, o odontopediatra vai verificar a normalidade das estruturas bucais, oferecer orientações quanto à alimentação e à limpeza bucal, e quanto à instalação do programa caseiro de saúde bucal.É importante que o processo de limpeza dos dentes de leite seja feito por meio de escovas, dedeiras ou gaze enrolada nos dedos do adulto cuidador assim que o primeiro dente de leite irromper na cavidade bucal (geralmente por volta dos 6 meses de vida). A dieta e a higiene bucal do bebê podem favorecer o equilíbrio e a manutenção da boa saúde geral.2 Uma vez que no primeiro ano de vida do bebê o contato com o médico pediatra é frequente, torna-se muito oportuno que a saúde bucal do paciente seja abordada pelo mesmo, estabelecendo-se assim os primeiros cuidados odontológicos e o reforço da necessidade de iniciar um programa de monitoramento e atenção primária pelos dentistas.

Manutenção da boa saúde bucal

Um programa permanente de monitoramento e atenção primária é considerado uma prática profissional que facilita o acesso à saúde bucal para um maior contingente de pessoas. Em um programa permanente de monitoramento, a “Manutenção Preventiva” é o retorno planejado e não precipitado de um paciente que, quando foi consultado pela última vez, estava com adequada saúde bucal. O espaço natural para acontecer a atenção primária, seja nos serviços públicos coletivos ou na clínica particular, é a consulta protocolar de “Manutenção Preventiva”, que tem intervalos de tempo baseado no julgamento do cirurgião-dentista, de acordo com as necessidades odontológicas de cada paciente/família, variando de mensalmente, semestralmente ou anualmente.

Situações que precisam do cuidado do Cirurgião-Dentista

A doença cárie, a gengivite e as más oclusões são as doenças bucais mais prevalentes nos seres humanos e, ainda, passíveis de tratamento e/ou controle efetivos. Por questões culturais, a maioria dos pais espera que os dentistas, sozinhos, tomem conta da boca de seus filhos. Pensam que o controle da cárie e da gengivite, por exemplo, pode ser obtido meramente pela visita ao consultório com intervalos regulares, o que na realidade não é suficiente e geralmente resulta em frustração para todos os envolvidos.

É função nobre dos profissionais de saúde (dentistas ou não) estimular os pais para uma participação ativa na higiene dental e no controle de possíveis alterações na cavidade bucal dos seus filhos. O que dentro da realidade econômico-cultural de nosso país não é uma missão fácil, seja nos extremos privilegiados ou desprivilegiados do extrato social. O estilo de estruturação e criação da família é uma variável fundamental para que o cirurgião-dentista caia nas boas graças da criança. O medo é uma das principais barreiras ao atendimento odontológico infantil regular, e claro, muitas vezes, potencializado por relatos fantasiosos de pessoas próximas que vivenciaram experiências desastrosas. A melhor maneira de superá-lo é pela construção de uma relação de confiança com um profissional bem treinado para o exercício da especialidade.

Existem técnicas de adaptação do comportamento da criança à situação odontológica baseadas na ciência e na experiência clínica. No entanto, os atendimentos de “Manutenção Preventiva”, por serem de baixa densidade tecnológica, tornam-se o caminho de escolha para forjar-se uma relação proveitosa e harmoniosa entre o paciente e o cirurgião-dentista.

Hábitos bucais deletérios, incluindo a sucção não nutritiva, devem ser monitorados e uma adequada orientação aos pais em relação aos limites e tolerâncias deve ser ofertada pela equipe interdisciplinar.

Cárie dentária e uso de flúor

Em relação à doença cárie, pode-se dizer que as lesões de cárie ativas somente permanecem neste estágio por falta de cooperação do núcleo familiar, ou por uma intervenção inadequada da equipe profissional.

Figura 1 – cárie dentária

O flúor é um agente terapêutico que reduz a taxa de desmineralização e aumenta a incorporação mineral (remineralização) nos tecidos duros dentários.8 A exposição diária, durante a escovação dos dentes, com creme dental fluoretado é a razão principal para o declínio da cárie observado em populações desde os anos 1970. Do ponto de vista prático, mais importante do que a marca comercial dos dentifrícios, o que conta em relação aos fluoretos é a observância da presença de pelo menos 1000 ppm de flúor na sua formulação. Crianças abaixo de 6 anos de idade, pela dificuldade em controlar a ingestão acidental de doses potencialmente tóxicas, deveriam ter acesso, bem supervisionado pelos pais, ao creme dental fluoretado.  Até os três anos de idade, um bom referencial é usar na escova, em cada escovação, meio grão de arroz de dentifrício fluoretado. Dos três aos seis, a quantidade de referência seria usar o tamanho de um grão de arroz cozido. O tamanho e formato da escova têm papel importante na qualidade da higiene bucal. Escovas de cabeça (e não o cabo) pequena, cerdas macias e de pontas arredondadas têm melhores chances de atender à maioria das crianças. Cerdas novas, sem curvaturas e sempre bem limpas após a higiene bucal garantem também um processo eficaz e eficiente. Escovas temáticas podem servir de motivação para o hábito de higiene bucal.

O papel da dieta no desenvolvimento da cárie dentária

Uma revisão sistemática, incluindo 36 estudos, mostrou que a relação entre consumo de açúcar e a doença cárie é mais fraca na época moderna de exposição ao flúor do que quando os fluoretos não eram ofertados de forma generalizada. Entretanto, esse estudo reafirmou que o controle do consumo de açúcares é uma parte ainda essencial da prevenção da cárie. Considera-se o consumo racional de açúcares, preferencialmente, limitado a momento específico (após as grandes refeições) e não generalizado em vários momentos do dia, como uma orientação consensual entre os odontopediatras. Estudos irlandeses identificaram fatores associados de maneira significativa com o aumento dos níveis de cárie para crianças de 5 a 15 anos, entre eles, o consumo de lanches doces (sólidos ou líquidos) entre refeições, mais do que 2 vezes ao dia.

A ingestão de açúcares entre as refeições principais e, principalmente antes do horário de dormir, sem a subsequente higiene bucal, está contraindicada. Caso haja uso de mamadeira noturna, ou mesmo aleitamento materno à noite, depois do aparecimento do primeiro dente na cavidade bucal, algum procedimento de higienização, idealmente com uma escovinha apropriada, precisa ser feito, pelo menos uma vez ao dia.  A redução do fluxo salivar noturno e a presença da sacarose são fatores de risco aumentado à desmineralização do esmalte dentário e formação de cárie dentária.

Gengivite

O acúmulo crônico de placa bacteriana em sítios dentários próximos à gengiva causa um processo inflamatório conhecido como gengivite.

Figura 2 – Gengivite

 O sinal mais comum desta alteração é o sangramento gengival com facilidade, durante a escovação e no uso de fio dental. Em estágios iniciais, pode-se reverter a gengivite por meio do controle mecânico e/ou químico da placa, mas, em estágios mais avançados (periodontite) é possível haver sequelas de improvável reversão espontânea. Apesar da gengivite em criança ter elevada prevalência, percebe-se que, pela dificuldade dos pais em identificar a sua existência, outros problemas bucais geralmente são mais valorizados pelos adultos.

Más oclusões

Diversas más oclusões podem ser identificadas em crianças e a indicação da época ideal para a abordagem terapêutica de cada uma delas é variada. Todavia, as desarmonias entre os arcos dentários, causadas por padrão morfogenético ou simples interferências oclusais, geralmente têm indicação de tratamento antecipado (ofertado antes da fase onde somente dentes permanentes já estão presentes). Como exemplo, tem-se a má oclusão de Classe III (prognatismo mandibular), mordida cruzada posterior, mordidas abertas e excessivo trespasse horizontal dos incisivos.

Figura 3 – Más oclusões: Classe 3, mordida cruzada posterior e sobressaliência

Referências bibliográficas

  1. Fraiz FC, Bezerra ACB, Walter LRF. Assistência Odontológica ao bebê – enfoque doença cárie dentária. In: Massara MLA, Rédua PCB, coordenadores. Manual de Referência para Procedimentos Clínicos em Odontopediatria. São Paulo: Santos; 2013. p. 113-119. 
  2. Giordano DV. Odontologia para bebês. Rev Bra Odontol; 2001;58:150-1.
  3. Silva CSDV, Benedetto MS, Bonini GAVC et al.  Conhecimento de pediatras sobre saúde bucal em Belo Horizonte: O que realmente é preciso saber? Rev Assoc Paul Cir Dent; 2014;68:126-31.
  4. National Clinical Guidelines, Royal College. Faculty of Dental Surgery. Paediatric Dentistry´s section; 1997.
  5. Beirne PV, Worthington HV, Clarkson JE. Routine scale and polish for periodontal health in adults. Cochrane database of systematic reviews. (2007)
  6. Fejerskov O, Kidd EAM, Nyvad B, Baelum V. Definindo a doença: uma introdução. Cárie Dentária: A doença e seu tratamento clínico. São Paulo: Editora Santos; 2011. p 4-6.
  7. Colares V, Caraciolo GM, Miranda AM, Araújo GVB et al. Medo e/ou ansiedade como fator inibitório para a visita ao dentista. Arq. Odontol; 2004;40(1):59-72
  8. Ellwood R, Fejerskov O. Uso clínico do flúor. Cárie dentária – a doença e seu tratamento clínico. São Paulo: Santos; 2011, p189-219.
  9. Marthaler TM. Changes in the prevalence of dental caries: how much can be attributed to changes in diet? Caries Research, 24(Suppl. 1);1990, p 3-15.
  10. Nyvad B, Fejerskov O, Baelum V. Diagnóstico tátil-visual da cárie. Cárie Dentária: A Doença e seu Tratamento Clínico. 2ª Ed. Tradução: Rossetti PHO. São Paulo: Santos; 2011, p 50-68.
  11. Marinho VC, Higgins JP, Logan S, Sheiham A. Systematic review of controlled trials on the effectiveness of fluoride gels for the prevention of dental caries in children. J Dent Educ; 2003;67:448-58. 
  12. Strategies to prevent dental caries in children and adolescents. Evidence-based guidance on identifying high caries risk children and developing preventive strategies for high caries risk children in Ireland. Irish Oral Health Sources Guidelines Initiative; 2009. p 23-58.

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