Dificuldade de aprendizagem escolar: como abordar?

Tempo de leitura: 13 minutos

Cláudia Machado Siqueira1

Débora Fraga Lodi2

Luciana Mendonça Alves3

Maria do Carmo Mangellli Ferreira4

1Pediatra, com área de atuação em Neuropediatria. Professora do Dep. de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialista em Neuropsicologia pela UNICAMP, Mestre e Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente pela UFMG, Coordenadora do Laboratório de Estudo dos Transtornos de Aprendizagem (LETRA) do Hospital das Clínicas/UFMG.

2 Fonoaudióloga. Especialista em Linguagem pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia e em Psicopedagogia pela Fead-MG. Colaboradora do LETRA do Hospital das Clínicas/UFMG.

3Fonoaudióloga. Pós-doutora em Linguística pelo Laboratoire Parole et Langage – França. Doutora e Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG. Especialista em Fonoaudiologia Educacional, Linguagem e Voz pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Professora Adjunta do Dep. de Fonoaudiologia da UFMG. Coordenadora do LETRA do Hospital das Clínicas/UFMG.

4 Psicóloga. Especialista em Neuropsicologia pela UNICAMP. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela UFMG. Subcoordenadora do LETRA do Hospital das Clínicas/UFMG.

Introdução

O início da educação formal e o processo de escolarização são importantes etapas do neurodesenvolvimento de uma criança, tendo impacto em indicadores de saúde, bem-estar e cidadania na idade adulta.

A escolarização, processo de aquisição de conhecimentos adquiridos na escola, é etapa importante e fundamental no neurodesenvolvimento da criança. O neurodesenvolvimento é um processo maturacional e interativo, ocorrendo de forma hierarquizada, sucessiva e sequencial. É fortemente influenciado por fatores individuais (biológicos) e ambientais. Assim, a promoção de oportunidades de aprendizagem adequadas em ambientes familiares, escolares e sociais favorece o desenvolvimento pleno do indivíduo.

A prontidão para aprendizagem é considerada a soma de habilidades individuais que facilitam ou atrasam o aprendizado, sendo influenciada pelo grau de maturação (física e mental), motivação e experiências vivenciadas. O processo de escolarização e alfabetização exige um nível suficiente de desenvolvimento nas habilidades perceptivas (auditiva e visual), linguísticas (compreensivas e expressivas), cognitivas, motoras (grossas e finas) e socioemocionais/comportamentais.

Dificuldade de aprendizagem escolar

Diferentemente da linguagem oral, a aprendizagem da linguagem escrita demanda instrução educacional na grande maioria das crianças. A alfabetização, processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, envolve habilidades e competências variadas como as perceptivas sensoriais (auditivas e visuais), de linguagem e comunicação, cognitivas, motores e socioemocionais. Devido à maior demanda, é comum serem evidenciadas dificuldades sutis do neurodesenvolvimento que passaram despercebidas na primeira infância.

As queixas de dificuldades de aprendizagem são as mais comuns nos primeiros anos escolares. Estima-se que cerca de 15-20% das crianças no início da educação formal apresentam dificuldades, podendo chegar a 30-50% se fossem analisados os primeiros seis anos escolares.

Normalmente, o médico pediatra é o primeiro profissional de saúde procurado pelos pais com esta queixa, por demanda dos próprios pais e/ou dos educadores. As preocupações devem ser valorizadas e adequadamente investigadas de forma individualizada e contextualizada. É importante esclarecer como os envolvidos (criança, pais e educadores) percebem o problema e quais as estratégias utilizadas.

Muitas vezes, as crianças com baixo desempenho escolar são erroneamente taxadas como “preguiçosos” e “desinteressados” para atividades escolares e “culpados” pelo fracasso escolar. Devido à dificuldade na obtenção de resultados positivos e/ou falta de suporte familiar/escolar, a criança torna-se desmotivada e com problemas de autoestima e autoconfiança, levando à recusa em realizar tarefas acadêmicas, a alterações comportamentais e problemas de relacionamento.

Durante a investigação, é importante compreender o que é dificuldade escolar e transtornos do neurodesenvolvimento associados a maior comprometimento acadêmico. A dificuldade escolar (DE) relaciona-se com problemas extrínsecos ao indivíduo, sem comprometimento orgânico, apresentando origem pedagógica e/ou sociocultural. Podem estar relacionados a absenteísmo, ambientes pouco estimuladores (família ou escola), métodos pedagógicos pouco efetivos e currículos pedagógicos inadequados. Os transtornos do neurodesenvolvimento (TND) apresentam origem neurobiológica e são intrínsecos ao indivíduo, com forte herança genética. Os TND manifestam-se principalmente como problemas acadêmicos, são: Transtorno Específico de Aprendizagem (TEAp), Transtorno de Déficit de Atenção (TDA/H), Deficiência intelectual leve (Quadro 1). As condições pedagógicas e/ou socioculturais inadequadas não causam TDA/H e/ou TEAp, mas potencializam os problemas escolares.

Grande parte dos escolares identificados com dificuldade de aprendizagem no ambiente escolar não preenche os critérios diagnósticos de transtornos descritos pelo Diagnóstico de Saúde Mental – 5ͣ edição (DSM-5) e/ou Classificação Internacional de Saúde (CID). A principal causa de baixo desempenho acadêmico é DE. As dificuldades de aprendizagem são mais comuns em níveis socioeconômicos mais baixos, baixa escolaridade materna, exposição a ambientes pouco estimuladores (casa, escola e/ou comunidade), instrução pedagógica inadequada (exigências incompatíveis com a maturação neurológica da criança, professores pouco capacitados ou adoção de metodologias pedagógicas sem embasamento científico).  Os meninos têm chance maior de 1,83 vezes de apresentar dificuldades de leitura do que as meninas.

Neste informativo, serão brevemente abordados o Transtorno específico de aprendizagem (TEAp) e Dislexia.

O TEAp é uma condição neurobiológica relacionada a problemas na aquisição e no desenvolvimento de funções cerebrais envolvidas no ato de aprender a ler, escrever e/ou raciocínio aritmético. Desde 2013, o DSM-5 agrupou os transtornos de aprendizagem em uma única categoria, devido ao compartilhamento de diversos processos envolvidos.  A capacidade para perceber ou processar informações (verbais ou não verbais) com eficiência e exatidão estão comprometidas, com prejuízo de um ou mais domínios acadêmicos. O escolar apresenta um desempenho individual bastante abaixo da média de seus pares no domínio comprometido, podendo atingir níveis de desempenho aceitáveis mediante esforço ou apoio educacional extraordinariamente elevado. Tais prejuízos podem se perpetuar por toda a vida, impactando principalmente em atividades (acadêmicas e de vida diária) que dependam destas habilidades, no desempenho profissional e em restrições nas participações sociais (VERPALEN, VAN DE VIJVER & BACKUS, 2018).

O TEAp apresenta prevalência mundial estimada de 5-15% em diferentes línguas e culturas. O TEAp possui forte herdabilidade, sofrendo grande influência ambiental. O TEAp deve ser especificado de acordo com os domínios afetados: (1) com prejuízo na leitura (precisão na leitura de palavras, velocidade ou fluência da leitura, compreensão da leitura); (2) com prejuízo na expressão escrita (precisão na ortografia, precisão na gramática e na pontuação, clareza ou organização da expressão escrita); (3) com prejuízo na matemática (senso numérico, memorização de fatos aritméticos, precisão ou fluência de cálculo, precisão no raciocínio matemático). O termo Dislexia é utilizado para descrever um padrão de dificuldades de aprendizagem caracterizado por problemas na decodificação (correlação entre as letras e os sons da língua), no reconhecimento preciso e fluente das palavras e na ortografia. A Dislexia é uma das manifestações mais comuns dentre os TEAp, ocorrendo em cerca de 80-90%. A teoria do déficit fonológico para Dislexia é a mais estudada e aceita pela literatura.2;6 Discalculia é o termo utilizado quando são identificados problemas no processamento de informações numéricas, na aprendizagem de fatos aritméticos e na realização de cálculos.17

Segundo o DSM-5, as dificuldades de aprendizagem dos TEAp assumem as seguintes características: (1) são “específicas” na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades acadêmicas básicas, seja na leitura, expressão escrita e/ou matemática; (2) são aparentes após início da educação formal, podendo tornar-se mais evidentes com maior demanda educacional nos anos posteriores; e (3) são “persistentes” por pelo menos seis meses, apesar da intervenção dirigida a estas dificuldades – modelo de resposta à intervenção (RTI). Estas dificuldades não podem ser explicadas por deficiência intelectual, problemas de acuidade visual ou auditiva não corrigidos, outros transtornos mentais ou neurológicos, adversidade psicossocial, falta de proficiência na língua de instrução acadêmica ou instrução educacional inadequada.

Assim como em todos os transtornos do neurodesenvolvimento, as dificuldades do TEAp NÃO são transitórias e um sintoma isolado não é suficiente para suspeitar do diagnóstico. Suas manifestações podem variar de criança para criança e ao longo dos anos escolares. Alguns sintomas são mais evidentes em determinadas faixas etárias, porém, as dificuldades são persistentes e ocasionam prejuízo para o indivíduo.

O quadro a seguir exemplifica os seis sintomas durante a escolarização descritos pelo DSM-5, contextualizando para a língua portuguesa (Quadro 2).

Segundo o DSM-5, para o diagnóstico de TEAp é necessário que pelo menos um dos sintomas descritos persistam por mais de seis meses, apesar de intervenção adequada para a dificuldade. É a única condição descrita no DSM-5 que requer dados de intervenção como recurso diagnóstico.

O modelo de resposta à intervenção (RTI – response to intervention) substituiu o critério anterior de discrepância (diagnóstico baseado no desempenho acadêmico abaixo do esperado para idade, escolaridade, nível intelectual) utilizado pelo DSM-IV. O modelo de RTI tem o objetivo de prevenir e remediar as dificuldades acadêmicas e comportamentais por meio de instrução educacional adequada e de intervenção eficazes. O nível de intervenção é progressivo: coletivo, em grupo ou individual. O RTI é dinâmico e exige monitoramento periódico e sistemático das respostas do indivíduo à intervenção.

O RTI destaca a importância do acesso à instrução educacional explícita e intervenção efetiva em tempo oportuno, antes que o fracasso acadêmico se estabeleça. Não há nenhum benefício em atrasar as intervenções necessárias, enquanto se aguarda avaliação diagnóstica individualizada.  É consenso que a incidência e severidade dos sintomas podem ser minimizadas por instrução educacional adequada associada à intervenção efetiva.

No RTI, o diagnóstico é baseado no nível de resposta da criança à intervenção.  O escolar com TEAp não responde satisfatoriamente à intervenção efetiva e continuada por pelo menos seis meses. O nível de desempenho acadêmico dos indivíduos com TEAp permanece abaixo do esperado para idade na(s) área(s) comprometida(s), de forma considerável e quantitativa, em testes psicométricos validados para avaliação individual do desempenho acadêmico.

Entre os TND, são extremamente frequentes as coocorrências e comorbidades, podendo prejudicar a progressão da criança e do adolescente, caso não sejam identificadas e abordadas corretamente. Muitas vezes é necessária a participação de equipes multidisciplinares no diagnóstico e no planejamento de metas e intervenções. A ocorrência mais frequente é o Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade (TDA/H), que varia de 40-60%, de acordo com a metodologia de pesquisa e critérios diagnósticos utilizados. Ambas são condições neurobiológicas distintas que compartilham de alguns processos funcionais e fatores predisponentes. As crianças com coocorrência de Transtorno de Desenvolvimento de Coordenação (TDC) apresentam dificuldades em motricidade fina e em grafia.

O Quadro 3 resume os principais quadros descritos do DSM-5 que podem impactar o desempenho acadêmico dos escolares.

Todos os indivíduos são capazes de aprender, desde que tenham acesso a intervenções eficazes baseadas em evidências científicas e apoio familiar e educacional. As instruções explícitas de alfabetização beneficiam todas as crianças, principalmente aquelas em condições de maior vulnerabilidade e risco de baixo desempenho acadêmico.

No desempenho de leitura, as instruções educacionais com resultados mais efetivos abordam habilidades de consciência fonológica, decodificação, fluência, vocabulário e compreensão. A intervenção eficaz para Dislexia recomendada é a remediação fonológica, sendo respaldada por fortes evidências científicas. Terapias alternativas e sem evidência científica são dispendiosas e podem retardar o acesso à intervenção eficaz. Desde 2009, a Academia Americana de Pediatria enfatiza que tratamentos para dislexia baseados em exercícios oculares, terapia comportamental visual ou uso de filtros ou lentes coloridas não possuem evidências científicas e não devem ser recomendados.

Veja também: A importância do diagnóstico preventivo das doenças renais pediátricas

Os direitos dos indivíduos com TEAp (Dislexia) estão respaldados pela Lei Brasileira de Inclusão (N⁰13.146/15) que garante o direito de igualdade de condições e oportunidades educacionais por meio de adaptações razoáveis, de acordo com as necessidades de cada indivíduo. Além dos ajustes, modificações e adaptações educacionais, a criança com TEAp (Dislexia) necessita de acompanhamento terapêutico clínico individualizado por profissional especializado durante os primeiros anos escolares.

Mensagens:

  1. Acompanhe marcos do neurodesenvolvimento durante toda a vida da criança. Em caso de alguma preocupação, faça intervenções junto à família, trace metas e avalie sempre o resultado alcançado.
  2. Cada indivíduo é singular no processo de aprendizagem e existem múltiplas variáveis envolvidas.
  3. Instruções educacionais estruturadas beneficiam todas as crianças, principalmente aquelas de maior vulnerabilidade e risco para baixo desempenho acadêmico.
  4. Identificação e intervenção efetivas precoces são a chave e o sucesso dos indivíduos com TEAp (Dislexia).
  5. A baixa competência de leitura pode levar a experiência reduzida de leitura e oportunidade de aquisição e desenvolvimento de vocabulário e conhecimentos gerais
  6. Nas crianças com dificuldades acadêmicas, a investigação da hipótese diagnóstica de Transtorno Específico de Aprendizagem (TEAp) é fundamental, pois necessita de intervenções terapêuticas específicas para o desenvolvimento pleno do indivíduo.

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Referências:

  • AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorder, 5th. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, p.970.
  • ARO, T.; AHONEN, T. (2011). Assessment of learning disabilities: cooperation between teachers, psychologists and parents.  African edition. Toronto, Canada: Suomen Yliopistopaino Oy – Uniprint: 179p.
  • MOUSINHO, R.; NAVAS, A. L. (2016). Mudanças apontadas no DSM-5 em relação aos transtornos específicos de aprendizagem em leitura e escrita. Rev Deb Psiq, v. 6, n. 3, p. 38-45.
  • PETERSON, R.L; PENNINGTON, B.F. D. (2015). Developmental Dyslexia. Annu Rev Clin Psychol., 11:p283-307.
  • SIQUEIRA, C. M.; GURGEL-GIANNETTI, J. (2011). Mau desempenho escolar: uma visão atual. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 57, p.78-87.
  • HULME, C.; SNOWLING, M. J. (2016). Reading disorders and dyslexia. Curr Opin Pediatr, 28(6): p731-735.

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