Enurese noturna: o que há de novo?

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23 abril de 2014 – ano 2 – nº 13. Boletim Científico Online.

Mônica M. A. Vasconcelos – Professora do Departamento de Pediatria- Faculdade de Medicina – UFMG, Presidente do Comitê de Cuidados Primários da Sociedade Mineira de Pediatria

enurese

Terminologia

Devido à diversidade de termos utilizados nos vários estudos sobre incontinência urinária em crianças, tornando esse campo passível de confusão semântica, é que a Sociedade Internacional de Continência em Crianças (ICCS), que é uma organização mundial multidisciplinar que trata do tema, propôs novas recomendações quanto à terminologia:

Enurese noturna (EN) é o termo utilizado como sinônimo de incontinência urinária noturna (durante o sono), em crianças de pelo menos 5 anos de idade, podendo estar acompanhado de sintomas urinários diurnos (urgência, incontinência urinária, manobras de contenção), sendo chamada de enurese não monossintomática (ENNM). Nos casos em que a EN é a única manifestação, sem sintomas diurnos, ela é denominada de enurese noturna monossintomática (ENM). É sobre essa condição que discutiremos aqui.

ENM é uma condição comum, que tem um caráter hereditário. Cerca de 10% das crianças aos 7 anos de idade urinam durante o sono.

Causas da Enurese

Durante muitos anos, admitiu-se que transtornos psicológicos eram a causa da ENM; entretanto, em estudos recentes não tem sido observada diferença na incidência de psicopatologia entre crianças enuréticas e normais, embora enurese e encoprese possam se manifestar como alterações de comportamento em crianças com distúrbios emocionais. Apesar de não existir um perfil psicológico definido entre os pacientes com ENM, a persistência do sintoma pode levar a sentimento de culpa, ansiedade, perda de confiança e, consequentemente, comprometimento da autoestima desses pacientes. Na enurese secundária, é comum a presença de uma situação de stress como causa da enurese.

São três os mecanismos patogenéticos que apresentam base científica suficiente para serem considerados importantes no modelo fisiopatológico da ENM: limiar elevado do sono, poliúria noturna e hiperatividade noturna do detrusor. Entretanto, ainda existem alguns aspectos obscuros sobre a patogenia da ENM.

1) Alterações do sono

Ainda é um dos fatores menos compreendidos e tem sido estudado há mais de 30 anos. Os pais, geralmente, relatam que essas crianças não acordam com facilidade. Entretanto, evidências sugerem que a arquitetura do sono de enuréticos é semelhante à de crianças que não molham a cama. Parece mais ser uma inabilidade de acordar, quando a bexiga atinge a sua capacidade funcional máxima.

2) Poliúria noturna e anormalidade do ritmo circadiano do hormônio anti-diurético (ADH)

Na criança, a partir dos 10 anos, existe uma variação circadiana na produção do ADH, com níveis mais elevados durante a noite e consequente redução da osmolaridade e do volume urinário noturno. A produção urinária excederia a capacidade funcional da bexiga e causaria a enurese. Aqui, novamente a distensão vesical que é um estímulo potente de despertar não funciona nos enuréticos.

3) Hiperatividade noturna do detrusor

A redução da capacidade vesical tem sido descrita como fator causal da ENM. Entretanto, é importante ressaltar que a bexiga não é anatomicamente menor, mas tende a se contrair antes de estar cheia. Calcula-se que cerca de 1/3 dos enuréticos apresentam esse distúrbio.

Abordagem inicial

O pediatra é o primeiro profissional ao qual, geralmente, as crianças com enurese procuram pelo atendimento. Uma primeira abordagem é simples, mas demorada; portanto, é importante que o profissional tenha experiência e compromisso nesses esclarecimentos iniciais para a família. Essa avaliação inicial tem como objetivos:

  1. Identificar a criança que tem enurese secundária a alguma condição clínica ainda não diagnosticada (diabetes, anemia falciforme, hipertrofia de adenoides);
  2. Identificar a criança que necessita, por outras razões, de avaliações posteriores;
  3. Identificar crianças com condições importantes de comorbidades;
  4. Iniciar o tratamento, após ter excluídos os itens de 1 a 3.

Nessa avaliação inicial, a anamnese é o ponto crucial. Dados da rotina miccional e fecal identificarão entre uma enurese monossintomática ou não.

Pressupõe-se continência urinária diurna e ausência de distúrbios estruturais e funcionais do trato urinário. Essa diferenciação vai impactar no tratamento que será instituído. É necessário que se saiba o máximo de características da enurese: o horário que ocorre, a periodicidade das perdas por noite e por semana, se a cama fica encharcada ou apenas molha o pijama, se a criança tem também noctúria. A função vesical e a fecal estão inter-relacionadas, portanto, questões sobre a rotina fecal também devem ser incorporadas na anamnese estruturada. Incontinência fecal é um sintoma comum em crianças com constipação, que deve também ser pesquisada.

Já na primeira consulta deve-se esclarecer à família que a enurese não é um ato voluntário da criança, portanto, não é aceitável que haja punições ou humilhações, atitudes essas que em nada contribuem para a resolução do quadro, além de piorar o quadro de baixa estima desses pacientes, que já está comprometida pela presença da enurese. Deve-se esclarecer, principalmente para a criança, que esse sintoma é comum entre crianças da mesma idade, mas que isso não é comentado devido ser considerado um “segredo” de família.

sem enurese

Tratamento

A idade ideal do início do tratamento deve ser individualizada e vai depender da maturidade da criança e do nível de tolerância da família, ou seja, até que ponto a ENM está interferindo na rotina familiar. As orientações gerais podem ser iniciadas antes dos 5 anos de idade e o tratamento após os 7 anos de idade, quando há uma maior motivação por parte da criança.

Orientações gerais

É indispensável que se tenha, preliminarmente, a certeza da ausência de alterações morfofuncionais do trato urinário. Em primeiro lugar, desmistificar o problema e, ao mesmo tempo, tentar motivá-la para o tratamento, que inclui mudanças de hábitos: micção frequente durante o dia (solicitar colaboração da escola), redução da ingestão hídrica no período noturno, supressão de fraldas, técnicas de reforço positivo com elaboração do calendário das noites secas e elogios pelo progresso (sem recompensa material).

Condicionamento por alarme

O alarme é composto por um sensor de umidade colocado no pijama, próximo à genitália da criança e ativado (vibração ou som) quando a criança molha a cama. A criança já acordada deve terminar a micção no banheiro. O uso deve se prolongar por 4 meses e o início do efeito é lento (6 – 8 semanas). As taxas de eficácia do método variam entre 40 – 70%. É importante a motivação da criança e dos familiares para o tratamento e só deve ser indicado naquelas com maturidade para compreender e manusear o aparelho. No nosso meio, é pouco utilizado devido a fatores culturais, ansiedade familiar, custo e dificuldades da comercialização do aparelho.

Tratamento medicamentoso

1) Acetato de desmopressina (DDAVP) é um análogo estrutural do hormônio antidiurético, que reduz a produção de urina durante a noite. O medicamento é mais eficaz em crianças com poliúria noturna (produção noturna de urina maior que 130% da capacidade vesical estimada/idade) e com uma função de reservatório vesical normal (volume urinado máximo maior que 70% da capacidade vesical/ idade). O custo elevado é uma limitação do uso.

2) Imipramina – É um antidepressivo tricíclico. O seu mecanismo de ação não é bem claro, sendo atribuído ao efeito anticolinérgico e simpaticomimético e não ao efeito antidepressivo. As taxas de resposta são de 10 – 60%, com índice elevado de recidiva após suspensão do medicamento. Apesar de ter sido amplamente indicada no passado, atualmente, é considerada como uma droga de terceira linha de tratamento devido ao risco de intoxicações graves. A indicação do seu uso deve ser criteriosa, não se justificando o seu uso no nível de atenção primária, ficando restrito para serviços especializados. Entretanto, ainda tem sido prescrito, no país, por ter custo mais acessível, em comparação com as outras modalidades de tratamento.

3) Anticolinérgico – Não está indicado na ENM. Entretanto, tem sido usado nos pacientes com hiperatividade vesical. A oxibutinina pode ser uma alternativa benéfica em algumas crianças com enurese resistente a outras modalidades de tratamento.

A variedade de opções de tratamento na ENM reflete a diversidade de teorias sobre a patogênese da EN. O sucesso do tratamento depende muito da colaboração e motivação da criança e da família.

Referências bibliográficas

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