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08 de julho de 2013 – ano I – nº 4. Boletim Científico Online
Ana Maria Costa da Silva Lopes – preside do Comitê de Saúde Mental da SMP
A Sociedade Mineira de Pediatria tem acompanhado de forma atenta as discussões que ocorrem, seja na mídia local, seja na mídia nacional, sobre o Déficit de Atenção e Hiperatividade.
Nesse sentido, a realização do “Fórum Saúde Escolar – mitos e ficções”, realizado em 8 de maio de 2013, visou a inauguração de um debate e construção coletiva sobre o tema, com a convocação dos comitês de saúde do adolescente, saúde escolar, saúde mental – desenvolvimento e comportamento – e neurologia, juntamente com representantes da educação.
O enfoque do Fórum foi o resgate de uma questão fundamental: “De que sofrem as crianças?” Acreditamos que essa resposta, tal como destaca Rachel Pitchon – presidente da Sociedade Mineira de Pediatria –, “deve ser construída com base em evidências científicas atuais, sem desconsiderar que tanto o conhecimento como as verdades são dinâmicos”.
Os desafios da vida contemporânea
Inicialmente, Paulo César Pinho, membro da Academia Mineira de Pediatria, introduziu o tema “Saúde escolar, criança e adolescente”, enfatizando que “cada criança e cada adolescente é um universo a ser entendido (…) por isso, é essencial respeitar a individualidade e aptidão de cada um”.
O pediatra, na abordagem das queixas escolares, deve afastar as desordens orgânicas e considerar as influências da família, da escola e do universo social em que a criança ou adolescente estão inseridos.
As novas tecnologias, jogos digitais, internet dentre outras se tornaram, por vezes, uma adicção tão difícil de ser tratada como a dependência química.
Atualmente, muitas vezes as mães não realizam o acompanhamento das tarefas escolares, atribuindo à escola toda a responsabilidade pelo desempenho escolar dos filhos. Ocorre uma defasagem entre as exigências curriculares atuais e os interesses das crianças e adolescentes.
O resultado desses vários fatores é a desmotivação e o desinteresse pelo processo escolar, gerando dificuldades de aprendizagem e de comportamento que, muitas vezes, são confundidas ou erroneamente nomeadas como transtornos psíquicos.
Nessa perspectiva, estudar tornou-se um ato monótono que compete com o fascínio pelo mundo virtual. Sendo assim, as queixas escolares exigem uma avaliação cuidadosa dos fatores familiares, escolares e dos particulares de cada criança e adolescente, diferenciando a Síndrome de adolescência normal, ou outras situações próprias ao desenvolvimento infantil, dos transtornos psiquiátricos propriamente ditos (Ver RIBEIRO, PCP. 2006).
Banalização do diagnóstico de TDAH
Em um segundo momento, Cristóvão Xavier, neuropediatra e presidente da ABENEPI – Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria infantil –, destacou os riscos de uma banalização do diagnóstico do TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Acredita que o TDAH é ainda pouco diagnosticado, ao contrário do que é divulgado pela mídia como excesso de diagnósticos e aumento da prescrição de psicofármacos.
O TDAH é uma causa comum de mau desempenho escolar, sendo passível de tratamento específico, com bons resultados terapêuticos para os casos adequadamente diagnosticados e tratados. O TDAH tem como característica essencial o padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade, mais frequentes e severos em relação aos seus pares.
Os sintomas iniciam-se por volta dos 3 a 7 anos de idade e persistem na adolescência e vida adulta, em mais da metade dos casos.
Apresenta base neurobiológica e forte hereditariedade. O pediatra deve estar atento aos fatores de risco, tais como: complicações gestacionais ou do parto; lesões cerebrais adquiridas; toxinas, fumo e álcool na gestação; prematuridade; baixo peso ao nascer (BARKLEY, RA e col. 2008).
A prevalência mundial está em torno de 5,29%, associada à significativa variabilidade, de acordo com critérios diagnósticos utilizados em países diferentes (POLANCZYK, G. 2007). A resposta terapêutica ao uso de psicoestimulantes é excelente.
Vida escolar e aprendizagem
Dando continuidade aos trabalhos, Cláudia Machado Siqueira, neuropediatra e professora assistente do Departamento de Pediatria da UFMG, abordou o tema “Transtornos do aprendizado”.
A aprendizagem é um processo que ocorre através da integração de diversas funções do sistema nervoso, promovendo melhor adaptação do indivíduo ao meio. Na aprendizagem, ocorre a interação entre o indivíduo e o meio através da experiência, promovendo mudanças (FONSECA, 2008). O meio fornece as informações que deverão ser processadas pelo indivíduo.
De forma didática, a aquisição e o processamento da informação podem ser divididos em partes: entrada (input), processamento e saída (output). O input ocorre através das vias aferentes – visão, audição e somatossensitiva (tato, gustação, olfato) -, constituindo a percepção sensorial da informação pelo cérebro. O processamento exige integração de áreas corticais e subcorticais, onde a informação é organizada, integralizada e armazenada e ocorre em áreas corticais perceptivas (gnósicas) e motoras (práxicas). Este processamento output, ou resposta efetora, ocorre pelas vias eferentes motoras. A motivação e os reforços positivos são fundamentais na aprendizagem. Quanto mais interessante e importante é a informação, mais fácil sua retenção e resgate, quando necessário (SIQUEIRA, CM. 2011).
A atenção e a memória têm papel essencial na aquisição de novas habilidades (aprendizagem). É através da atenção que se filtram as informações relevantes no meio (atenção seletiva) e se mantém sob foco esta informação desejada (atenção sustentada e focalizada).
A memória operacional (ou de trabalho) ocupa a função de selecionar, analisar, conectar, sintetizar e resgatar as informações já consolidadas, apreendidas (memória de longo prazo). A memória operacional faz a conexão entre as informações novas e aquelas já aprendidas (LIMA, 2005).
Cláudia Machado Siqueira destacou também a importância do diagnóstico de dislexia do desenvolvimento, que deve ser realizado por equipe multidisciplinar, através de uma série de testes que envolvem leitura, escrita, memória, atenção, além de habilidades cognitivas, linguísticas e acadêmicas (FUKUDA, 2010; SALGADO, CA, CAPELLINI, AS, 2008. Citado por SIQUEIRA, CM, 2011).
Ressalta-se ainda o cuidado com tratamentos alternativos, que podem ser dispendiosos e não possuem embasamento científico. Em 2009, a Academia Americana de Pediatria enfatizou que, apesar dos problemas visuais interferirem nos processos de aprendizagem, a causa primária dos Transtornos de Aprendizagem, incluindo a dislexia, não é visual (SIQUEIRA, CM, 2011).
Prosseguindo as apresentações, Ana Lydia Bezerra Santiago, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMG e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (que desenvolve pesquisa clínica e pedagógica sobre sintomas escolares, como problemas de aprendizagem e distúrbios de comportamento), alerta para o risco do déficit de atenção ter se tornado uma doença da moda, uma maneira corriqueira de medicar crianças e jovens que não se adaptam à vida escolar.
Enfatiza que, diante de uma criança com transtornos de aprendizagem e/ou comportamento, é essencial avaliar as relações pessoais, as práticas escolares. Destaca que a prática da segregação e exclusão ocorre cotidianamente nas salas de aulas brasileiras. Por vezes, qualquer agitação ou queda de rendimento é equivocadamente definida como TDAH, e a própria escola encaminha a criança ao médico e sugere a possibilidade de medicação, como forma de garantir o rendimento adequado e a adaptação da criança.
A agitação e o déficit de atenção podem ser uma resposta à angústia não nomeada, portanto, é preciso descobrir o que a agitação e/ou desatenção significa para a criança.
O primeiro lugar social da criança é a família e, quando as crianças não entendem as relações parentais, não entendem as relações com as letras, resultando em problemas que se manifestam na vida escolar.
Enfim, enfatiza que o diagnóstico de TDAH não deve desconsiderar o fator subjetivo e a dimensão do desejo. Alerta para o risco da medicalização quando não se considera que muitas situações de agitação e desatenção se resolveriam com uma intervenção pontual sobre os sintomas. Por meio da palavra é possível produzir efeitos terapêuticos significativos (SANTIAGO, AL. 2006; PEREIRA, MR; SANTIAGO, AL et al. 2009).
Dados da psiquiatria
Dando continuidade aos trabalhos, Ana Maria Lopes, psiquiatra com concentração na infância e adolescência e presidente do Comitê de Saúde Mental, apresentou o tema “Saúde mental e a queixa escolar” que é um dos principais motivos de encaminhamentos de crianças à rede pública de saúde e às clínicas-escolas de psicologia (BARBOSA, SILVARES, 1994; SALES, 1989; SANTOS, 1990).
No Brasil, 40% das crianças em séries iniciais de alfabetização apresentam dificuldades escolares e desempenho escolar pobre (SCHIRMER, FONTOURA, NUNES, 2004) versus as estimativas internacionais de prevalência em torno de 10% (ROESER, ECCLES, 2000).
Tal evidência nos possibilita interrogar se as escolas, por vezes, não transformam questões escolares em problemas de saúde, fato ao qual o médico, ao exercer o ato de medicar uma criança, deve estar atento.
Alerta, também, para o fato de que, para a psiquiatria, o exame psíquico é comparável ao exame físico na medicina geral e grande parte das vivências internas, subjetivas dos pacientes, é expressa em seu comportamento, tornando-se assim passíveis de serem observadas e descritas por outras pessoas, isto é, tornando-se objetivas.
Como base fundamental do exame psíquico, sabe-se que as funções mentais como memória e atenção podem mudar de um momento para outro; por isso, o exame psíquico isolado é pouco revelador. Sobretudo na avaliação de crianças, é preciso ampliar a observação, com intervalos de horas ou dias entre uma e outra.
A função psíquica atenção está para a psiquiatria no mesmo lugar de valor da febre, hipertermia, para a medicina geral (CHEANIAUX, E. 2007). Ou seja, alterações da atenção podem ocorrer em uma série de transtornos psíquicos. Nesse sentido, é essencial a avaliação ampliada e sequencial de uma criança para a realização de um diagnóstico, uma visão crítica da forma habitual de se realizar o diagnóstico de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – através da aplicação de questionários que são respondidos pela professora e família, por correrem o risco de ser observador-dependente.
É essencial que a criança seja avaliada em momentos diferentes, para se realizar o diagnóstico de todo e qualquer transtorno psíquico.
No processo de elaboração do diagnóstico, a criança deve ocupar o lugar central da avaliação, sendo escutada de forma direta ou indireta através de desenhos, jogos e recursos diagnósticos adequados a cada faixa etária. Situações em que a criança é tomada como simples objeto de avaliação diagnóstica, tal como nos testes neuropsicopedagógicos, devem ser criteriosamente avaliadas.
O adequado é que o profissional que realize a avaliação diagnóstica se proponha também a realizar o tratamento, pois os testes diagnósticos retratam um momento da vida psíquica e não uma verdade diagnóstica imutável.
Enfatiza-se a importância de resgatarmos na psicopatologia básica a noção de atenção que é um auxiliar da consciência, que otimiza o rendimento desta, fazendo com que os conteúdos mentais sejam mais eficientemente processados.
O interesse (vontade, afeto) influencia diretamente a atenção. Nesse sentido, a atenção pode estar alterada em vários transtornos mentais, como dissociativos, ansiedade, depressão, mania, esquizofrenia, dentre outros. Destaca-se, novamente, a importância de incluir a criança no processo de diagnóstico, realizar uma escuta cuidadosa investigando a presença de fatores agravantes, como alcoolismo dos pais, conflitos conjugais, doença crônica, violência contra a criança, dentre outros (CHEANIAUX, E. 2007).
A participação da escola
Em suma, diante de uma queixa escolar, os profissionais devem sempre se perguntar se é um problema escolar ou de saúde, visando evitar a “medicalização” ou a “psicologização” da queixa escolar (NEVES, ARAÚJO, 2007). Nosso objetivo deve ser da identificação e intervenção precoce.
Deve-se realizar um processo contínuo da sequência – avaliar, identificar, intervir – na perspectiva da realização do diagnóstico e da evolução de cada caso. É necessário definir o fluxo adequado de avaliação.
Nesse sentido, o que se propõe é que a escola esgote todos os recursos pedagógicos e educacionais na abordagem da questão escolar. Se necessária uma avaliação médica, elege-se o pediatra como o profissional ao qual a escola deve solicitar a avaliação clínica, visto que, habitualmente, o pediatra tem um conhecimento ampliado das relações familiares e dos possíveis fatores agravantes ou não. Em um segundo momento, de acordo com a avaliação clínica, serão realizadas as avaliações especializadas de acordo com a necessidade de cada caso.
O diagnóstico
A modo de conclusão, durante o debate foi enfatizada a importância da realização do diagnóstico adequado. Enfatizou-se que o TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – que ocorre na frequência de 6% da população geral deve seguir critérios rigorosos de avaliação, sobretudo pela excelente resposta terapêutica, quando adequadamente diagnosticado.
A realização do diagnóstico diferencial, com outros transtornos psíquicos que acarretem a alteração da atenção e/ou se manifeste como hiperatividade, é essencial.
O uso de psicoestimulantes deve ser rigorosamente acompanhado pelo médico responsável, de preferência mensalmente, e o tratamento não deve se restringir unicamente à abordagem medicamentosa. De acordo com cada caso, associam-se as intervenções na família, na escola e o suporte de tratamento psicológico e/ou pedagógico.
A posição do pediatra
Em suma, o pediatra é o profissional da área de saúde que primeiro tem contato com as queixas de mau desempenho escolar.
Tais queixas devem ser valorizadas e adequadamente avaliadas, visando o diagnóstico e intervenções precoces.
Os pediatras e demais profissionais de saúde e educação têm que estar habilitados a identificarem as crianças de risco para aquisição dos marcos de desenvolvimento, pois influenciam diretamente na habilidade de aprender.
Definiu-se como proposta final a ampliação de um espaço constante de discussão entre saúde e educação, propiciando que os diversos atores, no exercício específico de suas funções, possam construir de forma contínua novas estratégias para a abordagem das questões que se manifestam na vida escolar, visando à promoção de melhoria da qualidade de vida das nossas crianças e adolescentes.
A intervenção precoce possibilita melhores resultados e garante o processo de inserção social que se inicia na infância e repercute na vida adulta.
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